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Por Silvana Duarte

Embora geograficamente distante e pertencente a tradições históricas, religiosas e filosóficas tão distintas, num primeiro momento Índia e Brasil parecem não ter nada em comum, mas não é bem assim. Nada que um olhar mais atento e cuidadoso não possa revelar as muitas semelhanças entre esses dois países.  As semelhanças aproximam e as diferenças, embora causem uma “estranheza” inicial, despertam no mínimo a curiosidade e o fascínio pela cultura do “outro”.

Durante séculos de colonização, o Brasil foi palco da fusão entre as diferentes culturas. Essa miscigenação formou o que hoje caracteriza o país: um mosaico de povos, culturas e crenças. Um dos exemplos mais fascinantes das expressões artístico-religiosas populares oriundas do sincretismo cultural Brasil\África, é a “Dança dos Orixás”- uma dança de cunho espiritual elaborada pelo brasileiro Augusto Omolú. Omolú codificou esta forma de dança sob o olhar e orientação do seu Guru ou “pai de santo”, como gostava de chamar o teatrólogo italiano Eugênio Barba (Odin Teatret). A Dança dos Orixás, entre tantas outras formas de danças populares tradicionais brasileiras, é um exemplo claro do fascínio que a arte imbuída de significado espiritual opera no povo brasileiro, inclinado a apreciar as celebrações da vida, da natureza e do sagrado. Talvez seja esta a razão pela qual a Dança Odissi despertou tanto interesse, curiosidade e encantamento no público brasileiro, quando fez suas primeiras aparições nos grandes centros culturais do Brasil no início da década de 90, por meio de grandes nomes como Sanjukta Panigrahi, Madhavi Mudgal, Sharon Lowen e Sonal Mansingh.

Compartilho um memorável encontro entre a dança afro-brasileira e a dança Odissi na década de 90, protagonizadas por Sanjukta Panigrahi e o brasileiro Augusto Omolú, o criador da “Dança dos Orixás”. O encontro promovido por Eugênio Barba tinha por objetivo criar uma oportunidade de descobrir e trazer à tona uma gama de possibilidades do saber da dança de Omolú (em elaboração e codificação), graças ao saber de outra tradição mais antiga e elaborada, o Odissi. O único meio de comunicação entre Sanjukta e Omolú era por meio da linguagem cênica, uma vez que ela não falava português e ele não falava inglês. O desafio era criar uma cena juntos. Júlia Varley descreve com suas palavras a experiência: “Sanjukta começou a improvisar, passando da representação de um elefante à de um pavão, de Radha à Krishna, de uma serpente a um demônio. Omolú a seguiu, com as transformações de Oxumaré à Nanã, de Iemanjá à Ossãe, de Iansã a Ogum… Para marcar a mudança de personagem, ela rodopiava. Juntos, encontraram o estratagema que ele poderia usar: um procedimento parecido com um “estremecer”, aquela leve perda de equilíbrio com uma inclinação para trás que marca o momento em que um devoto é possuído por um Orixá (deidade). Quando Omolú mudava de personagem, era como se o “estremecer” fundisse uma nova energia em seu corpo.” O exercício de improvisação e diálogo entre Sanjukta e Omolú é um belo relato do quanto a arte é um meio privilegiado de aproximação de culturas e do quanto, uma vez sensíveis à experiência do “outro”, encontramos criativamente nossos próprios caminhos no fazer artístico.

Nas últimas duas décadas houve um crescente interesse do brasileiro pelo espetáculo e pelas práticas do Odissi, atraídos pela forma escultural, lírica e principalmente, pelo aspecto expressivo, filosófico e espiritual desta. O contexto espiritual da dança Odissi é facilmente assimilado pelo estudante brasileiro que identifica nesta arte, os mesmos valores humanos e universais presentes em suas próprias expressões artístico-religiosas. Enquanto as culturas diferem em suas expressões artísticas, por outro lado elas se aproximam e comungam dos mesmos valores.

Entre os muitos estudantes que iniciam os estudos, apenas uma pequena parcela corresponde à demanda de energia e tempo que a prática requer. E aqueles que persistem nas práticas, uma vez familiarizados com a técnica, quando adentram o universo da dança expressiva, entram em contato com uma das partes mais apaixonantes do estudo, que é a investigação dos inúmeros significados dos símbolos presentes na mitologia indiana. E ainda, a mais significante tarefa nesse estudo, é observação da forma como os símbolos dialogam com nós mesmos no nosso dia a dia, e principalmente, que influência operam na nossa visão de mundo e na percepção de nós mesmos. Felizmente encontramos excelentes referências sobre o estudo do Mito no Ocidente, tais como Mircea Eliade, Heinrich Zimmer e Joseph Campbell.

Entre as etapas da educação Odissi, penso que a que se apresenta como o maior desafio, seja identificar os gestos, maneiras e movimentos que traduzem um nativo de Orissa. Como caminha? como se comunica? Quais são os gestos que o identifica? Como uma Radha e um Krishna é retratado por uma dançarinoOriya? Com que graça esse corpo Oriya os traduz? De que forma a feminilidade ou masculinidade com todas as suas nuances em um corpo Oriya desperta em mim uma graça ou vigor ainda não experimentado no meu gesto e movimento? Estas e tantas outras questões a serem observadas no estudo da dança Odissi, me levam a crer que a maior contribuição que a arte possa nos oferecer seja o benefício do eterno “ redescobrir-se”. A arte é uma viagem para dentro de nós mesmos!
Nesse e em tantos outros ensaios contemplativos sob a arte do “outro”, somos compelidos a revisitarmos nossa própria maneira de ser e reavaliarmos os muitos valores, muitas vezes esquecidos. Me recordo nesse momento do poeta e ensaísta Octavio Paz, quando em seu poema prosa denominado Liberdad bajo la palabra (Liberdade sobre a palavra) diz: Invento al amigo que me inventa, mi semejante (…) (Invento o amigo que me inventa, meu semelhante).

 

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